A pista é a tela: radiolas e sound systems contam como vivenciam o digital na pandemia

Photo: Unsplash

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O bom do sound system bem aqui na sua rua, como diria a música Sound de Vila, de Laylah Arruda, está deixando saudades em quem frequentava os bailes fechados ou abertos voltados à cultura reggae/dub de amplificação sonora.

Além dos inúmeros impactos da pandemia que, a essa altura, já infelizmente sabemos de cor e salteado e sentimos fortemente na pele, os sound systems e radiolas também viram seus hábitos mudarem radicalmente. O habitat natural, que antes eram as ruas, praças, quadras e salões, com o grave batendo e a massa celebrando, acabou migrando para as telas. A experiência foi abruptamente e radicalmente transformada.

Conversamos com algumas equipes de todo o país que estão vivenciando essa mudança compulsória por conta do coronavírus e que já levaram suas sessões para as telas em algum momento dessa “””nova””” realidade.

Entre os entrevistados, houve quem realizou apenas algumas investidas digitais nesse período, enquanto outros passaram a ter as sessões nas plataformas digitais como o ganha-pão na quarentena. Seja como for, uma coisa é certa: essa foi a forma que as equipes encontraram pra não parar a música.

Carregando o case pra sessão online

“Começamos em abril de 2020, com a impossibilidade de realizar eventos. Já era um formato que conhecíamos há pelo menos uma década, através de projetos de amigos, como o Clubinho Underground e Breaking Up, que existem mesmo antes de projetos como o conhecido Boiler Room. Resolvemos usar esse formato inicialmente para manter a comunicação com o público pensando em um período passageiro (inocência nossa…)”, explica Flávio Rude, do Ruffneck Sound System, de Campinas (SP), que acaba de completar um ano de transmissões online frequentes.

Hoje, a equipe tem uma programação fixa em quatro dias da semana – terça, quarta, sexta e sábado – e estuda ampliar a agenda até que a situação fique realmente segura no país.

Flyer de uma das primeiras lives do Ruffneck Sound System, em junho de 2020

“Para nós foi um sankofa, ou seja, foi voltar a fazer online. Em 2005/2006, realizávamos um “programa” chamado “Bong das 14h”: todas quartas-feiras às 14h tocávamos online, via MSN, e somente uma pessoa escutava o áudio por vez. Eram 15 minutos para cada escutando a seleção que estávamos tocando, fazia “fila” das pessoas conectadas esperando sua vez”, conta DJ Raiz, do Ministereo Público, de Salvador (BA).

Ir para esse formato foi de fato uma opção para se conectar com o público durante essa pausa inesperada, que parecia ter data para acabar mas se mostrou mais duradoura do que aparentava.

Zion Gate em sessão na Twitch

“Começamos em julho de 2020 pra continuar mantendo o contato com o público e amenizar um pouco a saudade das sessões presenciais”, pontua Lincoln Ferraresi, do Zion Gate Sound System, de São Paulo. “Mantemos desde então as sessões pelo menos uma vez por mês, via Twitch“.

Uma forma de aliviar o impacto da pandemia

“A nossa primeira apresentação online aconteceu dia 15 de maio, ou seja, após 60 dias do primeiro decreto do Governo do Estado do Maranhão. Neste período, estávamos no ápice da pandemia e a maioria da população cumpria distanciamento social em seus lares. Então, decidimos levar ao nosso público diversão e interatividade online”, explica Pinto Itamaraty, da Radiola Mega Itamaraty, de São Luís (MA). “Fizemos duas vezes, uma em maio e outra em agosto de 2020”. Abaixo, a live de agosto de 2020, em celebração aos 31 anos da Itamaraty.

 

 

“Como sou da periferia, aqui onde moro a internet não me favorece nesse sentido. Então fiquei parado por quase um ano, até surgir um edital de chamada pública municipal, e com esse recurso pude finalmente fazer minha primeira live. Antes disso, eu tocava na varanda de casa para minha comunidade, e todos curtiam de suas casas,
isolados. Sinto muito falta do contato com o público, de estar nas ruas”, conta Tiago Sacerdote, do Jahmin Sound System, de Salvador (BA).

Bastidores de live do Jahmin Sound System em abril/2021

 

Para João Kariri, do Carcará Sound System de João Pessoa (PB), optar pelas lives foi também uma forma de perseverar na divulgação da cultura em sua região. “Nossa primeira live, nesse contexto aí da pandemia, foi em março de 2020. Tínhamos colocado o som na rua pela primeira vez havia pouco tempo, umas duas vezes só, e não queríamos perder o gás. A galera da cidade estava muito animada com a possibilidade de ter o reggae na rua, de forma livre, principalmente aqui onde o reggae acaba sendo meio restrito – só há em alguns lugares da cidade, na maioria das vezes espaços privados. Então, querer continuar a divulgar a cultura aqui foi nosso maior incentivo pra continuar nesse corre de forma online”.

Plataformas

Entre as plataformas utilizadas pelas equipes estão basicamente o YouTube, o Instagram, o Facebook e a Twitch. Aliás, a Twitch, basicamente utilizada pela comunidade gamer, caiu nas graças de quem transmite. “Já comecei logo de cara com a Twitch. Era uma plataforma que eu já conhecia, e ao mesmo tempo já via muita gente fazendo lives que eram frequentemente derrubadas por conta de direitos autorais em outras plataformas, o que não acontece por lá”, explica João Ganjaman, do Tricoma Dourado Sistema de Som, de Vinhedo (SP).

“Iniciamos as transmissões no Facebook, porém devido aos direitos autorais a plataforma limita as transmissões.
A Twitch, que era voltada para transmissões de games, surgiu como uma boa alternativa para os artistas da música manterem suas apresentações, já que não existe uma limitação tão rigorosa. Assim migramos do Facebook para a Twitch. Fazemos transmissões semanais, todos os domingos, durante quatro horas ininteruptas”, conta Vitão Ganja, do Jahmaica Sistema de Som, de Osasco (SP).

 

Mas há também quem prefira manter o engajamento com o público em plataformas nas quais ele já é bastante presente, como o Facebook. “Transmitimos pelo YouTube e Facebook. A plataforma Facebook é a preferida por atingir um número maior de nosso público”, ressalta Pinto Itamaraty.

Além da “pista”

Além da discotecagem, as equipes também vêm utilizando as plataformas digitais para outras atividades, como bate-papos.

Live no IG do Carcará Sound System com Pedro Lobo (Braza) e Toinho Melodia

“Quinzenalmente fazemos entrevistas. Quando começamos as lives, a parada era mais voltada a rodar os discos, tocar uns, mostrar pra galera uns sons que a galera num tinha conhecimento, mostrar os diferentes formatos do reggae. Mas cada vez mais sentíamos essa necessidade de falar da história da galera que produz reggae aqui nas nossas terras, aí começamos os programas de entrevistas de 15 em 15 dias nas sextas, às 19 horas”, conta João, do Carcará.

Rompendo barreiras geográficas

Sobre alcançar novos ouvintes, Flávio, do Ruffneck, explica como tem sido para sua equipe. “Atingimos um público e parceiros que estão fora de nosso alcance presencial. Hoje conseguimos um público fiel espalhado por todo o Brasil e mundo, que chamamos de Família Ruffneck”.

“São pessoas que renovam suas assinaturas todos os meses, marcam suas reuniões virtuais ou presenciais, aniversários e comemorações nos horários de nossas transmissões, nos recomendam para as amizades. Até pessoas importantes na indústria da música internacional e entretenimento que são referência para nosso trabalho, que dificilmente conseguiríamos um contato profissional, conheceram nosso trabalho nesse período, já tendo inclusive citado nosso canal em matéria de jornal e site internacional de relevância”.

 

Trecho de matéria no site iamcru.com, citando sessão do Ruffneck Sound System

Essa amplificação de alcance do trabalho também é uma percepção de outras equipes, como explica Vinícius Araújo, do Edifica-I Sistema de Som, de São Paulo (SP). “Com nosso canal podemos chegar a todos os lugares do mundo. Assim como temos espectadores do Brasil, também temos de San Diego/ USA, Argentina, México, Reino Unido, entre outros locais. Algo que talvez se estivéssemos somente com apresentações presenciais não teríamos alcançado.”

Vitão Ganja, do Jahmaica, compartilha da mesma opinião. “Pelo formato de raid (na Twitch), o lado positivo é nos conectar com equipes e seletorxs de todo os lugares do Brasil. Assim, levamos nosso trabalho para outras cidades, estados e até países, atingindo um público mais amplo”.

Desafios e vantagens do formato online

“Diferente de ouvir música em plataformas de streaming, a vantagem de poder acompanhar a seleção de outros colegas e também ser acompanhado pelo público sem a necessidade de se deslocar para os bailes é muito louca. Mas, ao mesmo, é óbvio que preferimos 1000% os bailes presenciais”, ressalta Jamil El Fakih, do Djanguru Sistema de Som, de Guarulhos (SP).

“Desafio é conseguir atrair e manter o público para consumir nosso conteúdo e contribuir financeiramente, enxergando isso como um trabalho com muita pesquisa, dedicação, tempo e custos. Explicar a complexidade de fazer isso no meio de artistas grandes na mesma plataforma, nos mesmos horários, precisando ter qualidade técnica como áudio e vídeo semelhantes sem ter o mesmo suporte financeiro, espaço na mídia para divulgação, classe social e boa parte do tempo nem a mesma cor. E que o público entenda que pra nós a importância de cada valor, cada assinatura é muito mais relevante, principalmente porque temos muitas pessoas na plataforma que tem o meio artístico como passatempo ou outro objetivo e não como profissão”, enfatiza Flávio, do Ruffneck.

“As vantagens é estarmos aprendendo novas técnicas de transmissão de lives independentes. Tempo para estudar, seja para buscar outra fonte de renda, seja para se profissionalizar ainda mais. O mercado da música vem se atualizando com rapidez e nós, artistas/grupos musicais e principalmente quem faz música autoral, precisa buscar um suporte para se posicionar da melhor forma no mercado. Já o maior desafio é não se contaminar, sair para trabalhar e não levar o vírus para casa, manter a paz com tantas mortes, inclusive de pessoas próximas”, conta DJ Raiz, do Ministereo Público.

E financeiramente, como ficou?

“No momento dependemos totalmente das doações que chegam durante as transmissões via Pix/PayPal. Nos ajuda bastante, principalmente por que o principal percursor de nossas lives encontra-se desempregado, mas este valor ainda é baixo quando comparamos com o que podemos atingir com o público”, pontua Vinícius, do Edifica-I.

 

Canal do Edifica-I na Twitch

“Não fizemos lives pedindo contribuições, (pois no começo) estávamos mais testando o formato. Na sequência, já rolou aprovação na (lei) Aldir Blanc, e sim, sem dúvida, nesse momento ajudou bastante todos integrantes, principalmente como renda mesmo”, explica Jamil, do Djanguru.

“Tanto as contribuições do público quanto o fomento do governo foram importantes para manter a equipe em atividade nesse período sem eventos. Muitos talvez não imaginam, mas existem gastos até mesmo para uma sessão online”, destaca Lincoln, do Zion Gate.

Esse formato deve permanecer?

É fato que a pandemia nos empurrou pra uma realidade ainda mais hiper conectada. Mas como as equipes encaram o futuro dessa transformação? Se não há unanimidade entre as equipes em perpetuar esse formato, no fim todo mundo concorda: é uma configuração que deve ser absorvida para a realidade pós pandêmica.

“Nossa equipe já pensa em novos modelos de livestream pós-pandemia, e acreditamos que a transmissão dos eventos presenciais também será uma ótima ideia quando toda esta problemática atual acabar”, aponta Vinícius, do Edifica-I.

DJ Raiz, do Ministereo Público, também vê esse futuro possível. “Muitos artistas, DJs, cresceram com esse formato, ganhando público de outras cidades, estados e países. Então, acho que pelo menos uma vez por mês pode ser interessante fazer live, encontros para bate-papos, entrevistas… Isso tudo pode ser explorado na pós-pandemia”.

DJ Raiz e DJ Pureza em live no Twitch, participando do evento de 15 anos do blog Só Pedrada Musical

 

Por outro lado, Jamil, do Djanguru, explica que a equipe não deve seguir com lives quando os encontros presenciais voltarem. “Eu acho que a pandemia empurrou a gente pro futuro né, isso não será muito uma escolha. Mas pessoalmente, se chegarmos a uma realidade de retomar os encontros presenciais em breve, não faço muita questão dessa realidade das lives, não. Esse período nos inspirou muito mais a criar nossa própria música para tocar no sound do que mergulhar profundamente no rolê das lives”.

O futuro híbrido dos eventos já é uma realidade em outros países, que estão em estágios mais controlados da pandemia, e é certo que isso será replicado no Brasil.

Além disso, o legado dessa reinvenção imposta, que veio do nada e que não nos deu outra chance, também deve permanecer, como explica Flávio Rude. “Acredito que isso tudo permanecerá pós pandemia. Talvez não com a mesma intensidade ou objetivos, mas muitas coisas boas foram construídas e não acredito que isso vai ser abandonado.”

 

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