GM Entrevista Exclusiva: Mateus Aleluia Filho e Eduardo Escariz falam sobre a releitura de Papel Machê inspirada nas raízes do reggae baiano

Mateus Aleluia Filho por Eduardo Escariz

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No último dia 19 de novembro, o cantor, compositor e instrumentista Mateus Aleluia Filho lançou seu mais novo single, em que revisita o clássico Papel Machê, canção de Capinam e João Bosco, evocando as raízes do reggae baiano. A faixa conta com participação dos conterrâneos Rafael Pondé (Diamba, Natiruts) e Eduardo Escariz – que assina a produção musical ao lado de Átila Santana (IFÁ). O single celebra o encontro dos músicos e traz à tona a importância do estilo que ajudou a embalar e projetar a música baiana. Gravaram também na canção o baterista Iuri Carvalho e o tecladista João Leão.

Mateus Aleluia Filho traz para a faixa sua herança que vem de Cachoeira, no Recôncavo Baiano. Do canto aos sopros dos metais, a cidade onde nasceu o Tincoã Mateus Aleluia – pai do músico – também foi berço da identidade que originou a forma de tocar e compor o reggae da Bahia. Além de toda história de resistência e cultura, a cidade que beira o Rio Paraguaçu é um celeiro de instrumentistas de sopro, como é o caso de Mateus Aleluia Filho, que, inclusive, no single, além de cantar, também toca trompete, instrumento no qual é especialista.

 

 

A tradição do estilo musical na Bahia se desdobrou em diversas vertentes, entre elas, o samba reggae, que projetou o Pelourinho para o exterior; o reggae de Gilberto Gil, que trouxe para o português versões de Bob Marley dando sua contribuição com grandes canções brasileiras sem perder a referência da fórmula básica jamaicana; e o reggae do Recôncavo, protagonizado por artistas como Edson Gomes, e conduzido por letras que denunciam a desigualdade social nas periferias, contos de personagens locais, protesto, religiosidade e pertencimento.

Mateus e Eduardo conversaram com a gente com exclusividade, contando sobre a bela homenagem a esse clássico da música brasileira, sobre as influências do griô e Tincoã Mateus Aleluia, sobre reggae na Bahia e mais. Confira!

 


GM: Mateus, a versão de “Papel Machê” que você apresenta carrega um forte vínculo com as raízes do reggae baiano e a herança cultural do Recôncavo. Como você vê a relação entre a tradição musical de Cachoeira e a sua identidade como artista?

MATEUS – Eu nasci no Rio de Janeiro, mas cresci em Cachoeira, sou de uma família de músicos,  tenho avô, tios e pai músicos. Comecei a estudar música com 11 anos em casa, depois que comecei a ler partitura fui estudar trompete na filarmônica, onde fui integrante até 18 anos, eu passava o dia na filarmônica. Meu pai é um Tincoã,  cantor e compositor que passou a sua vida pesquisando e gravando música da cultura Africana.

Os Tincoãs nos deixaram  grande legado, a leitura de Cachoeira estava no ar,  uma cidade que celebra toda essa amálgama cultural em conformidade com o tempo, sempre disposta a acolher, foi assim que o reggae passou a ser uma expressão muito forte nesse vale do Paraguaçu, com artistas que são referências nacionais do gênero como: Edson Gomes, Nengo Vieira, Sine Calmon, Titim Gomes, Marcos Oliveira  e outros nobres irmãos. Sou um homem do interior, de Cachoeira,  que foi formado por essa cena cultural e modo de viver natural…

 

GM: Essa releitura de “Papel Machê” não é apenas uma homenagem a Capinam e João Bosco, mas também um ponto de encontro entre gerações de músicos baianos. Como foi o processo de colaboração com os artistas envolvidos?

EDUARDO – O processo começou no estúdio de Átila Santana e Sebastian Notini, convidei Rafael Pondé que é um cara que tem um trabalho dedicado ao reggae para encontrarmos algum clássico para fazer uma releitura. Testamos algumas canções de Gonzaguinha, depois passamos pra Djavan e neste momento fiquei a pensar longos minutos qual seria a melhor opção quando me veio o refrão de “Papel Machê”.

Aí foi unanimidade principalmente por Capinam ser baiano e João Bosco ter também uma linha de canto afro. Pondé gravou uma guia no processo de gravação do seu último disco, mas sentimos que o andamento e o tom não estavam encaixando bem, daí chamamos Iuri Carvalho pra gente gravar a base. Fiz umas oito linhas de baixo até chegar na que ficou. Não é fácil transpor tantas variações de acordes que tem a música brasileira para um estilo musical que tem como característica principal um mantra com menos variações harmônicas.

Em seguida, João Leão deu sua contribuição e começamos a ficar na dúvida sobre quem seriam os intérpretes. Convidamos Mateus Aleluia Filho pra gravar sopro e na sessão já pintaram idéias de vocalizes que ficou muito claro que a interpretação de Mateus carregava a força que nós estávamos buscando. Pondé enviou sua participação direto de San Diego e acabei ficando com a missão de encontrar a melhor estrutura para cantarmos todos juntos. Acredito que além de todos que participaram serem completamente apaixonados por reggae, a forma como cada um contribuiu, sobretudo as vozes com texturas diferentes, trouxe frescor e unidade para releitura.

 

Mateus Aleluia Filho, Átila Santana e Eduardo Escariz

 

GM: O reggae da Bahia tem uma característica muito particular. Como você enxerga a evolução do gênero na Bahia?

MATEUS – O reggae é um estilo que se desenvolveu e com um público sólido,  muito mais do que um gênero musical, para muitos é uma forma de colocar no mundo, com filosofias e dogmas… Artistas como Edson Gomes, são ouvidos em todo o Estado, e com fãs de diferentes gerações.

EDUARDO –  Ao meu ver, mais do que uma questão evolutiva, é mais claro entender o reggae na Bahia como revolução. Primeiro temos que nos entender de uma vez por todas como uma potência afro. Assim como na escravidão a história do nosso reggae é o retrato da força, resistência e riqueza do povo preto.

Em Salvador e no estado da Bahia os elementos do reggae ultrapassaram as fronteiras do próprio estilo e isso se manifestou no mundo através do sotaque do nosso tambor e das nossas incríveis orquestras de percussão surgidas em nossa capital. O Samba Reggae foi um ritmo revolucionário, que mesmo a indústria musical local em parceria com governos e televisões tentando perpetuar o racismo dentro de nossos carnavais não foram capazes de conter a dimensão gigantesca deste movimento.

São poucas iniciativas, muito tímidas, que trazem à tona a história ampla dos compositores dos ritmos, dos grupos, de onde eles vêm. É preciso dar créditos aos músicos e abandonar de uma vez por todas este modelo colonialista. Estamos desperdiçando tantos talentos! Em 30 anos de Axé Music usaram e abusaram das linhas de baixo, de guitarra, da batida, do ritmo como se fosse algo sem origem, como se fosse simplesmente o background de uma banda com um intérprete branco. Toda essa concentração de poder econômico e visibilidade faz com que de outro lado os verdadeiros criadores de toda essa identidade permanecessem num cenário de miséria até morrerem.

Os reais protagonistas da nossa música são os ritmos e as claves, os mesmo que hipnotizaram Paul Simon e Michael Jackson para virem beber da nossa cultura. Vale ressaltar que o estilo musical também se manifestou no formato tradicional de forma muito potente no Recôncavo Baiano, no trabalho de Gilberto Gil, Lazzo Matumbi e nas bandas da década de 90 já num contexto de que não eram predominantemente fundadas por rastafáris e tinham na sua formação pessoas brancas. Vale ressaltar que Salvador viveu na década de 80 o começo de uma pressão sob os artistas para fazerem sucessos ainda embalados por andamentos muito acima da cadência arrastada do reggae, e ainda com a roupagem que o Carnaval ditava.

Até hoje esse fato marcou a personalidade de algumas gerações, gerando uma ditadura estética que minou a liberdade da produção fonográfica e excluiu muitos artistas da cena. Para indústria do axé music o reggae no seu estilo puro não animava bloco, não vendia disco, portanto, o lugar dele ficar seria no underground.

 

GM: A escolha da Ponte Dom Pedro II como cenário para o visualizer de “Papel Machê” é bastante simbólica. O que a conexão entre as cidades de Cachoeira e São Félix, através dessa ponte, representa?

MATEUS – Escolha do irmão Eduardo, sempre sensível com as imagens, gravamos em pleno São João,  a cidade cheia, o povo celebrando e feliz, momento de descontração e leveza!

EDUARDO – Mais do que a conexão entre Cachoeira e São Félix – acredito que as pessoas locais de lá sabem do que se passou na região – nós como brasileiros temos que estar mais atentos à profundidade deste celeiro cultural para o desenvolvimento de uma identidade afro extremamente rica.

 

 

O Recôncavo além de ser um local de resistência e luta no processo de independência do Brasil abriga centenas de terreiros de religiões de matriz africana, por consequência existe uma complexidade musical. Das composições de Mateus Aleluia à Roberto Mendes, passando pelo grupo Remanescentes que posteriormente desaguou nas carreiras solo de Nengo Vieira, Edson Gomes e Sine Calmon podemos ainda destacar as orquestras de sopro de onde saíram músicos incríveis como o próprio Mateus Aleluia Filho.

É uma terra fértil e o Rio Paraguaçu que passa debaixo dessa ponte serviu de inspiração para histórias, para além de toda servidão econômica e comercial da Casa Grande e sua Senzala. É no interior, longe dos centros de controle urbano colonialista que vive o povo aquilombado que trouxe os códigos culturais além mar. Estar neste lugar é visitar nossas raízes!

 

GM: De que maneira a figura e o legado de Mateus Aleluia influenciam a sua trajetória musical, Mateus? 

MATEUS – É o meu Pai, não posso negar essa responsabilidade, sempre encarei com naturalidade, nunca estivemos fora da realidade dos músicos da Bahia e do Brasil, sempre acompanhei meu pai e outros artistas, tenho uma longa carreira como instrumentista/trompetista. O Caminhar e o canto do meu pai tem uma influência direta; o timbre, as frases, o repouso nas frases, sinto que é natural, não é nada forçado. 

 

GM: Em “Papel Machê”, você mistura elementos de reggae com a musicalidade local, criando uma sonoridade única. O quanto da sua herança a em Cachoeira se reflete na sua maneira de compor e arranjar as músicas?

MATEUS – É muito natural, cresci ouvindo os Atabaques no Candomblé,  os coros na Igreja Católica, e tocando os cantos e contracantos na filarmônica, um privilégio crescer no Recôncavo da Bahia, com toda essa amálgama cultural. 

 

GM: Além da música, o reggae da Bahia sempre teve um papel importante nas manifestações sociais e culturais. Como você vê o papel da música hoje, em especial o reggae, como uma forma de resistência e de afirmação da identidade baiana?

MATEUS – O reggae fala do amor, o reggae levanta a bandeira da paz, o reggae é resistência do povo negro e trabalhador. O reggae  conta a vida real das periferias, do trabalhador informal (o camelô), fala da ancestralidade, convida para dançar esse reggae, fala de poesia, e fala da vida!!!

 

 

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